8 de out. de 2007

HILDA HILST (1930-2004)





Nesta árvore planta-se fruta-pão. Desta árvore colhe-se o mais bendito dos pães: a palavra. E eu quero fazer balangar nestes galhos os versos daquela que, para mim, não é uma poeta: trata-se da poeta. Mais dizer não digo, porque mais dizer seria redundância.
Hilda Hilst, mais Caio F. Abreu e Clarice Lispector, compõe o tríptico de fornecedores da chave que abriu as portas da ponte pênsil que transportou o jovem para a vida adulta. Por um período, compreendido entre os 20 até os meus 27, 28 anos, não seria verdadeiro de minha parte dizer que li as palavras de Hilda Hilst. Eu as consumi. E fui consumido por elas.
Como rebordosa, ainda convivi com ela. Fui amigo dela. Desde a primeira vez que nos falamos, em uma Feira do Livro, em Campinas (SP), nunca, jamais, ela me tratou baseada na relação ídolo/fã. Nem eu a ela, pela via inversa. Fomos amigos de verdade. E isso, juro, em nada abalou a minha admiração pela sua poesia. Antes, ao contrário. Conviver com Hilda Hilst foi, sim, uma lição de generosidade. Assim ela era comigo: generosa, imensamente generosa. Entre os vinhos que tomávamos, ela gostava que eu lesse em voz alta os textos que ela produzia. Algumas vezes ela os alterava, a partir de ouvi-los de mim. Eu dizia: não faça isso, Hilda. Ela respondia: faço, sim, Marcos. Sua entonação de voz me fez ver o que realmente preciso dizer. E tomávamos mais um cálice de vinho. Dos bons, sempre. Antes de deixá-los com o que realmente interessa: a poesia de Hilda Hilst, apenas gostaria de dizer que me foi humanamente impossível ter passado incólume por esta convivência tão estreita. Chego a imaginar que ninguém passaria. Apenas não consegui decifrar se ela possuía ou era possuída pelo Verbo. Alguém se dispõe a enfrentar o enigma?

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O que me vem, devo dizer-te DESEJADO,
Sem recuo, pejo ou timidezes. Porque é mais certo mostrar
Insolência no verso, do que mentir decerto. Então direi
O que se coleia a mim, na intimidade, e atravessa os vaus
Da fantasia. Deito-me pensada de bromélias vivas
E me recrio corpórea e incandescente.
Tu sabes como nasceu a idéia das pontiagudas catedrais?
De um louco incendiando um pinheiro de espinhos.
Arquiteta de mim, me construo à imagem das tuas Casas
E te adentras em carne e moradia. Queixumosa vou indo
E queixoso te mostras, depois de te fartares
Do meu jogo de engodos. E a cada noite voltas
Numa simulação de dor. Paraíso do gozo.

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De montanhas e barcas nada sei.
Mas sei a trajetória de uma altura
E certa fundura de águas
E há de me levar a ti uma das duas.
De ares e asas não percebo nada.
Mas atravesso abismos e um vazio de avessos
Para tocar a luz do teu começo.
Das pedras só conheço as ágatas.
Mas arranco do xisto as esmeraldas
Se me disseres que é verde a dádiva
Que responde as perguntas da Ilusão.
E posso me ferir no gelo das espadas
Se me quiseres banhada de vermelho.

Em minhas muitas vidas hei de te perseguir.
Em sucessivas mortes hei de chamar este teu ser sem nome
Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta
Destruindo o Homem.

Hoje te canto e depois no pó que hei de ser
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teu pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E de um verde negro teu casco e os areais
Onde me pisas fundo. Hoje te canto
E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos tingir o espaço. De luzes. Se sangue.
De escarlate.

Lavores, cordas e batalhas
O que me vem da alma. Lavor
Porque trabalho sobre o teu rosto
De palha: construo o impossível
Meu senhor. Cordas, porque te amarro
Com as turquesas informes do desejo.
E um sem fim de batalhas
Porque prender a ti num coração de fêmea
É querer lavores: o quebradiço constante
Porque tento com a palha
A finura perfeita de um semblante.
E o que deve fazer
Quem não se lembra mais do mais perfeito
E de si mesma só tem o humano gesto?

*** quatro poemas extraídos do maravilhoso livro SOBRE A TUA GRANDE FACE, editado em 1986 pela Massao Ohno Editor e que é todo enriquecido por lindos grafismos de Kazuo Wakabayashi.

Cultivado por Marcos Pardim

8 comentários:

Sônia Marini disse...

Marcos,

Também duvido que alguém passasse incólume. Eu, mesmo apenas espiando pelo buraco da fechadura, não passo.
Que versos! Hilda me desnorteia.
Obrigada por compartilhar e por avisar. Adorei a prosa.
beijos

mg6es disse...

É... emocionante apresentação... conheço pouco de Hilda Hilst, e devo/preciso invadir seu uniVerso. Por agora, obrigado, Marcos pelo presente!

abração.

clarice ge disse...

Admirar Hilda é fácil, pertencer ao seu universo emocionante, é como tocar na poesia e conhecer sua alma. Não me surpreende que a tenhas conquistado...
abraço Marcos

diovvani mendonça disse...

Amigo Marcos, sem desprezar outros furacões - HILDA, eis o derradeiro FURACÃO!!! Lava-incandecênte, eterno adentro... Né-não?

~^^ ~Abraço~^~^ ~

P.E. Gosto de criaturas como HILDA - sem papas e travas na língua.

Anônimo disse...

sônia, tem nada que agradecer. sei que vc tem por hilda uma profunda admiração. e estes poemas são muito pouco conhecidos. este livro teve edição especial e reduzida.

múcio, intuo que chegando lá vc acabará descobrindo que o Universo de hilda é Pluriverso...

clarice, tenho cá as minhas facilidades em conviver, em gostar e ser gostado pelos amigos...

diovvani, meu camarada, né-sim... e as travas de hilda eram mesmo sem papas, sem bispos, sem padres, sem frades, sem freiras...

Rubens da Cunha disse...

belo relato. mais. provocador de inveja diria. a minha já está sobre você.
muito bom o blog de vocês.
abraços.

Anônimo disse...

valeu, rubens... e ter convivido com hilda é mesmo uma bela e intensa parte de minha nadíssima invejável existência...

júlia disse...

comovente sua história com ela
e esses poemas, gente, a hilda uma fortaleza de poema, uma escrita estupenda

obrigada