15 de nov. de 2007

Eu amo

Clarice Lispector


Tudo começou quando eu ainda era uma pré-adolescente. Pelas mãos de um professor fui apresentada ao livro Água Viva. A primeira leitura me deixou excitada. Como se as páginas guardassem estimulantes hormonais que me fariam mulher. E guardavam. Não os estimulantes sexuais, mas algo que tinha efeito muito parecido. E esta leitura foi feita com a respiração suspensa e o fôlego à beira de um colapso.
Em Água viva, descobri que “viver ultrapassa todo entendimento” Descobri também a chave de muitas outras portas a serem abertas. Água Viva me levou a um sem-número de escritos que, aparentemente irregulares, fugiam a qualquer tentativa de comparação com tudo que eu já tinha lido.
Descobri Clarice Lispector. Sua inteligente e inventiva linguagem coloquial e seus profundos questionamentos da condição humana levaram-me, ainda adolescente, a buscar entender o mundo à minha volta. E aguçaram minha intuição para transitar entre os claros e escuros da vida.
Para amar Clarice foi preciso apenas senti-la. Como ela própria diz:
“Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.”

E para tentar conhecê-la, segui seus personagens. E ela foi se mostrando:
“Eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro.”

Falando sobre a vida:
“...umas das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.” “Viver ultrapassa todo entendimento.”

Sobre as coisas do amor:
Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.

Sobre ser escritora:
"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas... continuarei a escrever"
"A palavra é meu domínio sobre o mundo"

Mas para falar de Clarice, é preciso mais que juntar palavras. Ela, um poema-vivo, só pode ser entendida através de outro poema. E eis que um dos maiores poetas da língua portuguesa o fez:

Visão de Clarice Lispector

Carlos Drummond de Andrade

Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.
O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.
Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.
O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.
De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.
Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.
Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice.

Este dia chegou. Para mim e para todos que, como ela, sabem que “Quando se ama não é preciso entender o que se passa lá fora, pois tudo passa a acontecer dentro de nós.”