1 de ago. de 2007

Ana Cristina César (1952 - 1983)

Noite Carioca
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.

...
Minhas primeiras mal-traçadas por aqui é sobre uma poeta. Uma, como ela dizia, “mulher do século 19, disfarçada em século 20”. Uma poeta que viveu como quem despede a raiva de ter visto, e que, por isso, demitiu-se de seu viver esperando, talvez, que a morte lhe pudesse ser – oxalá tenha sido – um descanso calmo e doce, um doce e calmo descanso. Estou falando de Ana Cristina Cruz César. Ana Cristina César para alguns, ou simplesmente Ana C., para outros. Conheci a sua poesia em 1984. Estudava meu primeiro ano de faculdade na Unesp, no campus de Marília (SP). Estávamos em greve e havíamos invadido o prédio da reitoria em São Paulo e os de alguns campus – entre eles, o de Marília. A situação era mais ou menos tensa. Havia a possibilidade de a polícia invadir o campus para retirar-nos. Eu estava sendo um dos acusados de ter cometido um ato de violência contra uma professora contrária às nossas reivindicações estudantis: ter destruído o seu material de estudos e pesquisas com a espuma de um extintor de incêndio. Não havia sequer sido favorável a esse ato lamentável, mas, por injunções, tinha de manter uma certa ambigüidade. Havia a acusação, os depoimentos e até um possível processo. O píncaro da caceteação! Numa dessas noites, Tatau (um poeta concretista, aluno de filosofia) entregou-me uns papéis mimeografados. Pediu que eu os lesse. Segundo ele, iriam me fazer bem Eram poemas de Ana Cristina César. E eu li. E ainda leio-os. Como se fossem uma luta que encarcera o último apelo que intimida. Como uma semente poética. Como confidências de um ancião enquanto o entardecer reza. Ou, melhor ainda, como uma nesga súbita que eu vi. Ou que eu li. Hora de sua poesia:
.
Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
na gengivas.
______________
Acreditei que se amasse de novo
Esqueceria outros
Pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
Organizei a memória em alfabetos
Como quem conta carneiros e amansa
No entanto flanco aberto não esqueço
E amo em ti os outros rostos.
(em Contagem regressiva – Inédidos e dispersos)
______________
A PONTO DE PARTIR
A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.

______________
UM BEIJO
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor.

______________
Noite de Natal.
Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
Com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
Transar aos 45 anos
Entretanto sou moça
Estreando um bico fino que anda feio,
Pisa mais que deve,
Me leva indesejável pra perto das
Botas pretas
Pudera.
______________
ESTE LIVRO
Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
Coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
Total tilintar de verdade que você seduz,
Charmeur volante pela posta, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

______________
TRECHOS DE POEMAS DO LIVRO INÉDITOS E DISPERSOS:

Esvoaça... Esvoaça... "É como a vela que se apaga, E a fumaça sobe e se atenua. É o amor fraco que se apaga, Não adiantam poemas para a lua.
Sofre o homem, o amor acaba E a doce influência esvoaça Como o fio adelgaçado De fina e translúcida fumaça Esvoaça, esvoaça... Atenua o amor, Atenua a fumaça. Para que tanta dor? E o amor que vai sumindo, Adelgaça, esvoaça, esvoaça... (maio/1963)
______________
Cultivado por Marcos Pardim, com uns pitacos meus - Diovvani Mendonça, na seleção dos poemas. Peço desculpas ao amigo Marcos – é que o universo da Ana Cristina, é tão rico e gosto tanto de seus poemas, que não resisti e inseri na postagem, mais algumas palavras dela. Acredito que de agora em diante, as postagens dos plantadores pegarão o ritmo semanal proposto.


15 comentários:

clarice ge disse...

Ana C. maravilhosa. Tão cedo partiu que perdeu de saber (também de saber-te, Marcos) que na força de suas palavras viveria para sempre. E tu, envolvido por momentos de pressão teve na poesia o desafogo. Ótimo texto e escolhas, o que não me surpreende já que escrito por ti. Abraço meu

mg6es disse...

poesia pura, e da melhor qualidade frutificando por aqui. grato pelo presente! já ouvi falar de Ana C, e agora vou buscar mais elementos sobre a mesma. sem falar a apresentação: perfeita!

vlw!

:)

Anônimo disse...

Não conhecia a poesia dela, Dio. Bacana mesmo. Mistura sutil de sentimentos tantos. Por vezes me lembrou Clarice Lispector.
Saio daqui com aquela sensação gostosa que dá a boa descoberta.
Valeu! Beijo grande.

Sônia Marini disse...

Eu também estava no meu primeiro ano de faculdade em 84 e também me envolvi em greves. Mas só conheci a poesia de Ana C. bem depois. Se tivesse conhecido antes... talvez muita coisa fosse diferente hoje.
abraços

Nilson Barcelli disse...

Não conhecia nada da Ana Cristina Cesar.
Fiquei maravilhado com o que li.
Bom fds, abraço.

Marina disse...

Eu adoro a Ana C., é uma das minhas poetas favoritas...

:)

Anônimo disse...

gosto demais dela... forte e triste... intensa!
como "uma folha branca" a nossa espera...
beijo

Anônimo disse...

clarice, ana c. era mesmo maravilhosa. foi-se cedo demais. era muito amiga de caio f. abreu, outro que também nos faz muita falta.

corra, múcio, corra (rss..) ana c. vale a corrida, a andada, a pedalada (rss...)

isabella, lembrar-se de clarice lispector é sempre uma ótima maneira de exercitar a memória.

sonia, dona sonia, quer dizer que também fostes grevista, hein? pudera, moradora do grande abc (rss...)

nilson, ana c. é de maravilhar-se mesmo...

mary, muito bom gosto literário tens... e, certamente, por esta árvore há de frutificar muita coisa boa ainda...

valéria, força e tristeza, de uma certa sempre vez, me parecem mesmo imprescindíveis...

Pedro Pan disse...

, ana cristina e seu texto eu conheci do nada. sempre acontece algo assim, conhecer músicas, textos e poetas em ocasiões que nem sonhava com elas...
, abraços meus.

Anônimo disse...

pedro, são doces estes acasos que nos proporcionam intensos casos...

Sônia Marini disse...

Moradora do ABC e apaixonada por um membro do diretório acadêmico. rsrsrsrsrs

Anônimo disse...

sonia, "membro do diretório acadêmico"?... (rss..) hã, que paixonite aguda mais dúbia, muié... (rss..)

Vanessa Souza Moraes disse...

Muito bom!

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