3 de set. de 2007

Sophia de Mello Breyner

Sophia de Mello (1919 - 2004) foi sem dúvidas uma das poetisas lusitanas do século XX - XXI, que emociona até hoje pela força da palavra. Sophia fez da palavra um outro viver no mundo, uma forma alternativa de vivenciar cada experiência e devolver a este mesmo mundo sua impressão, mas não uma impressão rasa. Seu olhar era o daqueles que sempre vêem o além da superfície. Não era um olhar perdido no horizonte, era um olhar abissal, que buscava sempre as camadas abaixo, para expôr a vida aos que têm os olhos desavisados.

Ela me emociona e é tudo que digo dela. Biografias existem espalhadas por aí, mas não quero antecipá-la pela sua vida como mulher comum, que completou seu ciclo. Nascer, viver e morrer é comum a todos. Deixo para vocês sua poesia, que esta sim quebra qualquer lógica do tempo e permanece.

Janaína Calaça.

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As pessoas sensíveis


As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

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A pequena praça


A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça
Naquele Outono em que a tua morte se organizava meticulosamente
Eu agarrava-me à praça porque tu amavas
A humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojas
Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer
E a vida toda deixava ali de ser a minha
Eu procurava sorrir como tu sorrias
Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco
E à mulher sem pernas que vendia violetas
Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti
Eu acendia velas em todos os altares
Das igrejas que ficam no canto desta praça
Pois mal abri os olhos e vi foi para ler
A vocação do eterno escrita no teu rosto
Eu convocava as ruas os lugares as gentes
Que foram testemunhas do teu rosto
Para que eles te chamassem para que eles desfizessem
O tecido que a morte entrelaçava em ti


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A hora da partida


A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

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Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

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Poema

A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada


(Sophia de Mello Breyner)

8 comentários:

Sônia Marini disse...

Tenho vindo sempre. Está cada vez melhor. Seleção de primeira.abraços

Anônimo disse...

Não conhecia a obra de Sophia de Mello.
"...O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita..."
Lindo isso.
Obrigada por me proporcionar essa descoberta, Janaína.
Beijo pr'ocês que regam essa árvore.

Anônimo disse...

Isabella, a Sophia deixou poemas inesquecíveis. Ela permanece através das palavras e vale a pena buscar mais. Os poemas que escolhi são um exemplário da sensibilidade desta mulher, que carregava no nome já a sabedoria enraizada.

Beijos, querida.

Jana.

Anônimo disse...

Deusdocéu... Sophia...
A poesia da Sophia, em um dia durante um pôr-do-sol, sem qualquer cerimônia, me adentrou a alma. Um primeiro verso e eis-me ali capturada.
"Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias." Vez por outra me pego repetindo este poema. Faço dele um mantra, uma oração.
Janaína, coisa boa pordemais o seu plantio. Acho que ainda não tinha lido algo que falasse tão bem a Sophia : "Seu olhar era o daqueles que sempre vêem o além da superfície. Não era um olhar perdido no horizonte, era um olhar abissal, que buscava sempre as camadas abaixo, para expôr a vida aos que têm os olhos desavisados". Isto é mesmo Sophia. Intenso e belo. Parabéns! Adorei sua escolha.
Um abraço.

diovvani mendonça disse...

Sophia, eis a sabedoria transmutada em pessoa, em poesia. E sendo ela, Jana, apresentada por voc� aqui na nossa �rvore - entendo, agora, muito mais sobre voc� minha cara. Essa fonte... Onde voc� molha, sua verve, � das melhores. ^~~^^^ ~^~Abra�o~^^ ~~^ ~

Pedro Pan disse...

, legal sua postagem/plantação janaína. eu não conhecia sophia. depois vou procurar mais textos dela pra ler...
, beijos meus.

Anônimo disse...

somente um poema aqui, outro acolá: a isso restringe-se o meu parco conhecimento sobre sophia de mello breyner. foi bom saber um pouco mais dela aqui, janaína. 1 bj

mg6es disse...

bem-vinda seja, Sophia! Adorei conhecer aqui mais um pouco do seu mundo.

'A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto" perfect!

[]´s