Durante minha adolescência a poesia começou a dançar ante meus olhos. A coluna semanal "Do Caderno H", no jornal Correio do Povo, assinada por Mario Quintana, me encantava. Passei a perseguir sua escrita vorazmente e nunca mais o perdí de vista. Ele me transmitia ternura mesclada a uma ironia brincalhona.
Quando meu coração batia mais forte, a poesia me comichava e ia parar nas folhas de cadernos no lugar das matérias a que eram destinados. O responsável por isto foi este poeta perspicaz, brincalhão, debochado, que também trabalhava sériamente como tradutor para a Editora Globo e escrevia em revistas e jornais. A sua figura frágil por fora transbordava uma riqueza interior que o tornava imenso a meus olhos. Traduziu obras de diversos escritores estrangeiros como Lin Yutang, Voltaire, Virginia Woolf, Maupassant, dentre outros. Colaborou para que obras como Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, fossem lidas por brasileiros que não dominavam a língua francesa. Ao todo, Quintana foi tradutor de 138 obras para o português.
Como autor interpretou seu cotidiano de uma forma leve, risonha, faceira. Ele falava das ruas, da cidade, do tempo, do amor, da vida, da morte... Ele me falava 'ao pé do ouvido'.
Escreví-lhe, naquela época, uma longa carta que nunca enviei. Vivendo na mesma cidade e transitando pelas mesmas ruas, nunca o conhecí pessoalmente. Levo em mim seu mesmo espanto acriançado frente aos absurdos do mundo, do belo e do feio.
Faço eco as palavras de Érico Veríssimo que disse:
"... descobri outro dia que o Quintana, na verdade, é um anjo disfarçado de homem. Às vezes, quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora. (Ah! Como anjo seu nome não é Mario e sim Malaquias)..."
e complemento com o que escreveu Sérgio Napp:
"Mario Quintana, o que não gostava da arquitetura moderna por que esta não sabia fazer casas antigas; que afirmava que o domingo era um cachorro escondido sob a cama; que se transfigurava na figura do pai; que possuía um amigo que deixara de crer ao ouvir o sermão da montanha recitado por um castelhano; que afirmava que os cabelos da morte se entrelaçavam de flores e que suas mãos não tinham anéis; e que traçou, feito um mestre, o mapa da cidade, não era um homem solar, muito pelo contrário: a noite é que o encantava."
Clarice Ge
-----------Mario Quintana-----------
Da Paginação
Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos - gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas - que passarão também a fazer parte dos poemas...
Leituras
Não, não te recomendo a leitura de Joaquim Manuel de Macedo ou de José de Alencar. Que idéia foi essa do teu professor?
Para que havias tu de os ler, se tua avózinha já os leu? E todas as lágrimas que ela chorou, quando era moça como tu, pelos amores de Ceci e da Moreninha, ficaram fazendo parte do teu ser, para sempre.
Como vês, minha filha, a hereditariedade nos poupa muito trabalho.
A Arte de Ler
O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.
Educação
O mais difícil, mesmo, é a arte de desler.
Leitura
Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir — até onde? — uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada.
O Assunto
E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.
A Coisa
A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi própriamente dita.
Poema da Gare de Astapovo
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo tao sózinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
RECORDO AINDA
Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...
Poema
O grilo procura
No escuro
O mais puro diamante perdido.
O grilo
Com as suas frágeis britadeiras de
vidro
Perfura
As implacáveis solidões noturnas.
E se isso que tanto buscas só existe
Em tua límpida loucura
-que importa? -
Exatamente isto
É o teu diamante mais puro!
RITMO
Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco
varre o cisco
Na pia
a menininha escova os dentes
escova os dentes
escova os dentes
No arroio
a lavadeira bate roupa
bate roupa
bate roupa
até que enfim
se desenrola
toda a corda
e o mundo gira imóvel como um pião!
Canção da Garoa
Em cima do meu telhado
Piruli lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.
O relógio vai bater:
As molas rangem semfim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.
Chove sem saber porquê
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin
Poeminho do Contra
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
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Pitaco do Diovvani, sempre bem vindo:
"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas.
Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha,
nem desconfia que se acha conosco desde o início
das eras. Pensa que está somente afogando problemas
dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar
inquietação do mundo!"
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Colaboração na imagem de minha querida amiga Valéria C., que veio para ficar (ôba) e abrilhantar nosso espaço.
Caricatura de Tacho, durante uma exposição no Centro Cultural Mario Quintana, de Porto Alegre, pescada por mim aqui.
Clarice Ge
20 comentários:
ai ai...
uma mistura de doçura e sabedoria destes dois poetas... Cralice e Quintana...
eu gosto do jeito simples que ele fala das coisas densas... das coisas simples... das coisas...
penso que não é a toa que a Cra escolheu Quintana pra estréia... e fico muito feliz de, estar aqui com eles...
beijo
E o fruto é doce e macio...salivando eu ao pé dessa árvore deixo carinho e desejo sorte aos poetas que a regam.
beijosss
Nossa! Tomei uma dose extra de "Quintana" e estou tonta de vida! Graças à Clarice! E eu já tomei a liberdade de imprimir os textos(posso?), porque quero encompridar minha alegria doida, lá no meu sofá, lendo, e lendo...
Só tenho um livro de Mário Quintana. (O que é uma falha vergonhosa!)
Mas, agora, quer saber, Clarice? Até chorei sentida, aqui...sem motivo...ou por vários motivos juntos...não sei...
Ah! Beijos e beijos para Clarice, Val, Diovvani, Pedro Pan...e para mais um montão de gente que veio pendurar frutos de poesia nesta Árvore abençoada!
Dora
Minha primeira vez no blog-árvore. Maravilha este fruto Clarice-Quintana, macio como algodão! Quanto ao sabor, bem... Não sei explicar, acho que tem gosto de mágica.
Abraço a todos!
Vó Clarice falou no ultimo post sobre seu blog, então vim dar uma olhadinha! Mas pelo que vi uma olhadinha não é suficiente aqui! Belo blog. Abraços!
mas que frutos deliciosos essa árvore tem dado, hein?
saio toda lambuzada... como quem come uma manga rosa bem docinha, bem madurinha...
me sentindo criança, que acaba de pular do pe...
bj
mais, e da para saborear mesmo,que sabor tem....?
maravilha!!!
beijo
Clarice e Valéria, o Quintana deve estar todo prosa, com vocês duas o ladendo. VALeu, mesmo!!! Lindo-lindo...
Abaixo, deixo um escrito do homem, que até hoje passarinha, na cabeça da gente... que fez ninho nos galhos, dos nossos corações.
roubei no http://sarapalha.blogspot.com
do qual gostei muito.
...
QUINTANA'S BAR
A POESIA É NECESSÁRIA
Título de uma antiga seção do velho Braga na Manchete. Pois eu vou mais longe ainda do que ele. Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética é sempre um esforço de auto-superação e, assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhoria da alma.
E, mesmo para os simples leitores de poemas, que são todos eles uns poetas inéditos, a poesia é a única novidade possível. Pois tudo já está nas enciclopédias, que só repetem estupidamente, como robôs, o que lhes foi incutido. Ou embutido. Ah, mas um poema, um poema é outra coisa...
Mario Quintana
A Vaca e o Hipogrifo
em Poesia Completa
Nova Aguilar. Rio de Janeiro.
2006.
...
^~^Abraço~^~
Ah Quintana... quem nunca quis ser assim, hein? de versos fáceis, puros... Clarice, como se diz por aqui, "acertou na veia!", ótimo fruto trouxe à Árvore... brigado por torná-la mais doce.
bjaummm!
"ouvindo Quintana
minha alma assovia
e chupa cana"
Alice Ruiz
Quintana... Cla... Eita que este plantio dá de um fruto que tem gosto de sorriso no rosto! Gostoso, Cla, passear por Quintana por seu olhar. E eu, Cla, me permito repeti-lo:
"Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!" ;)
Um beijo de frôdebeijaflor chein de carinho!
Fazer uma estreia acompanhada pelo Mário Quintana é mostrar um cuidado especial e um carinho muito grande pelos teus leitores e amigos. Tiveste uma delicadeza de alma e uma dose de generosidade que nos cativou logo de início. Um texto lindo, uma doce homenagem, e uma estreia que só poderia vir de uma poetisa que espalha sementes de ternura por onde passa. Parabéns pela escolha do tema e muito grata pelo lindo momento proporcionado.
Esta árvore dos poemas só pode dar bons frutos, a julgar pelo quilate dos participantes.
Deixo-te hoje, querida Clarice, não só pétalas de mimosas flores, mas lindas rosas coloridas para enfeitar o teu sonhar.
Um beijo no coração!
minha paixão sempre foi quintana. Sempre disse que ele era meu pai. pai do meu amor pelas palavras simples, das coisas simples, das pessoas simples.
lindo aqui,
lindo!
beijos!!!
Quintana querido: simples, doce e fundamental alimento. Fruto bom demais da conta! Beijo pr'ocês.
, quanto carinho pela poética de quintana heim?! bonito de ler este carinho. creio que conheço apenas um livro dele e fragmentos.
, beijos meus.
passei e gostei do que li, parabens
saudações
A menina, amiga de jardins que esta borboleta aqui adora, suas palavras-flores me atraem, me deliciam na leitura. Adoro Quintana e adorei a maneira com que nos mostrou as peculiaridades.
Beijões procê!
Quintana, incansável investigador do verve, maravilhado com a Poesia que há em ser poeta, encantado com seu próprio encantamento, enfim. Quintana, o mestre menino, o velho amigo de qualquer um.
em 94, o trem da última viagem passou na gare, levou o anjo mais sapeca de nosso Brasil, o maior colecionador de palavras de ternura que já se ouviu.
linda homenagem, Clarice!
obs.: o poema “Poema” é a minha cara!
ainda que atrasado, cheguei, por não ter perdido o caminho, e reencontrei quintana, plantado por clarice nesta árvore. salve, clarice e suas escolhas. bj
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