6 de mai. de 2010

Abgar Renault (1901-1995)

Felicidade

Felicidade - o título tão comprido deste poema tão pequeno!
Felicidade - substantivo comum, feminino, singular, polissilábico.
Tão polissilábico. Tão singular. Tão feminino. E tão pouco comum.
Substantivo complicado, metafísico,
que cabe todo
na beleza clara de alguém que eu sei
e no sorriso sem dentes de meu filho.

...

Humildade

Minha humildade de água me trouxera
ao mais íntimo pó do pós de ti
e rira à desatada primavera
os ouros e cristais que ela sorri.

Trajada de urze, barro, liquen e hera,
ficara em desbotado e eterno aqui,
marcando, à tinta de ar, pelo ar a espera
de se entreabrirem tempestades e

silêncios para os lumes do teu passo.
Modelara-me em terra ou limo crasso
para ser teu desdém, objeto ou chão.

Vivera no final de selva e furna,
tornara o coração ilha noturna,
século, inverno a dormir o teu clarão.

...

Omnia fluunt (*)

De tempo somos feitos, e acabamos
quando escassa clepsidra seca em nós.
Inescrutavelmente gotejamos
a nossa essência breve, neste a sós

fugirmos entre fugitivos ramos
de horas e dias. Fluidos e sem voz,
escorremos de nós e nos escoamos
sem esperança até a esperada foz.

Ah! interromper-se o fluxo que nos leva,
a água que flui fazer-se imóvel fonte,
parado sonho a vida solta no ar...

Não vermos fosso, muro, fria treva,
e adiarmo-nos além deste horizonte,
sem outrora, num hoje circular.


(Omnia fluunt = tudo flui)

Mais sobre a Poesia de Abgar Renault:
http://www.joaquimnabuco.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4247&sid=530
http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/96809
http://www.revista.agulha.nom.br/arenault.html

5 de mai. de 2010

Quem Somos?
Leonardo de Magalhaens

Seja nas noites de insônia
ou nas tribunas das mesas de bar,
as indagações (até a náusea!)
sobre a nossa real natureza!

Assim não serei demais
ao ousar enfim esclarecer -
sendo o orador exaltado
dos meandros de nossa Identidade.
Quem, o que somos?

Nós somos os sobreviventes das noites insones,
os últimos românticos, o passado golpeando
de volta,
todos os erros semânticos;

Nós somos as testemunhas do Vazio da Época,
os arautos da Verdade obsoleta,
os audazes navegantes da virtualidade,
os desempregados caídos nas sarjetas;

Nós somos os obsoletos para a Máquina
do Mundo,
os desamparados da Providência,
a caridade do fundo monetário,
os endividados com a Consciência;

Nós somos a imagem do puro ateu ilustrado,
a alegria represada nos insultos,
o acúmulo da narcóticos no sangue,
a vontade digerida nos tantos cultos;

Nós somos os beijos roubados nos cinemas,
o prazer em pílulas sintéticas,
as vítimas das garotas nos inferninhos,
os bastardos da indústria cibernética;

Nós somos os que sobrevivem sem mestres e
mesadas,
o escarro mais filosófico do que o Cristianismo,
as que exigem igualdade, mas com os privilégios,
a última moda do fascismo;

Nós somos a bofetada na face do deus Money,
os gestos ufanos nas passeatas nacionalistas,
os prisioneiros com talão de cheque e cartão
de crédito,
a vaidade latente nos atos terroristas;

Nós somos os anarquistas graças ao velho e bom deus,
aqueles assumidos e transvestidos,
os consumidores fanáticos do velho e bom
rock’n’roll,
os últimos belos e malditos;

Nós somos os esperados, os clientes ideais,
a manutenção do mercado desigual,
o luxo nos trajes dos colonizadores,
o triunfo da desigualdade social;

Nós somos os deserdados do estado paternalista,
o sarcasmo na face dos fisiocratas,
os pagadores da dívida pública,
o salutar bocejo dos burocratas;

Nós somos os fundamentalistas de todas as religiões,
os ganhadores dos jogos virtuais,
o auditório dos programas de domingo,
os perdedores dos jogos reais;

Nós somos o ódio a todos os burgueses,
os sentinelas do campo de concentração,
os condutores do barco bêbado,
a literatura de todas as revoluções!

Nós somos aqueles que se julgam donos do destino,
aqueles que queimam a terra e as florestas,
a corrosão de toda a conformidade,
os natimortos do mercado global,
a máscara humana da desumanidade!
Nós somos os verdadeiros deuses!


02jan05